sexta-feira, 30 de abril de 2010

UMA CRÔNICA DE RUBENS ALVES

- Na sua crônica “Perguntaram-me se acredito em Deus”, Rubens Alves com os seus pensamentos firmes e poéticos mostra com muita criticidade a existência, não de um Deus, mas de vários, de acordo com o padrão cultural e emocional das pessoas dentro dessa sociedade desequilibrada capitalista, na qual uma minoria impõe que a felicidade está no acúmulo de bens materiais e poder, mesmo com a destruição do próprio meio ambiente em que vivem.

- Na sua crônica Rubens Alves bem que poderia ter citado o Deus dos corruptos, como o do governador Arruda de Brasília e sua caterva de políticos, os quais, conforme mostrado nas mídias, aparecem rezando para algum Deus desequilibrado, agradecendo pelo dinheiro oriundo das propinas ou simplesmente desviado de programas sociais que iriam alimentar criancinhas em alguma escola degradada da periferia de algum bairro miserável.

- A crônica é tão singela e profunda que desmistifica o Deus de muitos e me fez lembrar que há em todas as dimensões do universo uma força primária onipresente em cada átomo e em cada dimensão. Muito diferente dos deuses imaginários criados por muitos grupos de religiosos e de políticos sequiosos de poder e de riquezas materiais.

Com seus Deuses maquiavélicos, esses poderosos impõem, hoje de maneira bem mais sutil, uma estrutura de leis sociais, econômicas e políticas para servir ao interesse de poucos e massacram o povo ignaro, impiedosamente, para o total controle social.

- Vejamos a crônica desse grande escritor:

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PERGUNTARAM-ME SE ACREDITO EM DEUS

RUBENS ALVES

Aconteceu ao final de um debate sobre educação promovido pela Folha. Chegada a hora das perguntas uma senhora me perguntou algo que nada tinha a ver com educação. Perguntou porque lhe doía: "O senhor acredita em Deus?" Houve tempo em que era mais fácil acreditar em Deus. Hoje até o Papa se atrapalha. Na sua visita ao campo de concentração de Treblinka perguntou o que não deveria ter perguntado: "Onde estava Deus quando esse horror aconteceu?"

Heresia porque a pergunta silenciosamente afirma que Deus não estava lá. Se estivesse não teria deixado aquele horror acontecer. Pois Deus não é amor e todo poderoso? Se estava lá e deixou acontecer ou ele não é amor ou não é todo poderoso. Por outro lado, se ele não estava lá ele não é onipresente...

Depois do atentado terrorista ao World Trade Center o "New York Times" publicou um artigo com essa mesma pergunta: Onde estava Deus? Se estava lá, por que deixou acontecer? Dietrich Bonhoffer, pastor protestante que foi enforcado por haver participado de um frustrado atentado para assassinar Hitler - às vezes não há como fugir: ou matar um único, para que muitos não sejam mortos, ou, para preservar a pureza pessoal, não matar esse único e deixar que milhares sejam mortos; a inocência pode ser mais criminosa que o crime..., lutou com essa pergunta: "Onde está Deus?" Sua resposta foi simples: "Deus está aqui, mas ele é fraco..."

Se Deus existe e é forte, como perdoá-lo por permitir que aconteça o horror de sofrimento que não deveria acontecer? Mas se Deus é fraco ou não existe, então seria possível perdoá-lo e amá-lo. Aí choraríamos e diríamos: "Se Deus existisse e fosse forte isso não aconteceria..." A gente fica, então, com saudade do Deus que não existe. Mas eu não disse nada disso para aquela senhora. Apenas perguntei de volta, pedindo um esclarecimento: "Acreditar em qual Deus?

Há tantos... Homens ferozes e vingativos têm um Deus feroz e vingativo que mantém, para sua própria alegria, uma câmara de torturas chamada Inferno para vingar-se dos seus desafetos.

Há o Deus jardineiro que criou um Paraíso e mora nas árvores e nas correntes cristalinas. Há o Deus com alma de banqueiro que contabiliza débitos e créditos... Há o Deus da Cecília Meireles que se confunde com o mar... Há o Deus erótico que inspira poemas de amor carnal... Há o Deus que se vende por promessas e faz milagres... E há também o Deus criança de Alberto Caeiro e Mário Quintana. Qual deles?"

Ela ficou em silêncio, meio perdida. Então lhe respondi com os versos do Chico: "Saudade é o revés do parto. É arrumar o quarto para o filho que já morreu".

E perguntei: "Qual é a mãe que mais ama? A que arruma o quarto para o filho que chegará amanhã ou a que arruma o quarto para o filho que nunca chegará?".

E acrescentei: "Sou um construtor de altares. Construo meus altares à beira de um abismo. Eu os construo com poesia e beleza. Os fogos que acendo sobre eles iluminam o meu rosto e aquecem o meu corpo. Mas o abismo continua escuro e silencioso..."

Aí, provocado pela pergunta daquela mulher desconhecida escrevi um livrinho cujo título é a pergunta que ela me fez: "Perguntaram-me se acredito em Deus". Àquela mulher o meu muito obrigado...

Referência: Rubem Alves, Folha de São Paulo, 03/04/2007, pág. C2