segunda-feira, 9 de maio de 2011

O DESRESPEITO PARA COM OS PRINCÍPIOS DA CARTA CIDADÃ DE 1988


         Estamos vivendo a tão propalada era do conhecimento, mas o que se observa é o aparecimento de vários indícios que apontam para uma nova idade das trevas.
          Com a diminuição de empregos, aumento desproporcional da robotização no setor industrial, rural e até mesmo no setor de serviços, somados ainda com a insegurança nos empregos ainda existentes, tudo isso levam milhares de pessoas a se prepararem por meses a fio, com muito sacrifício, para os concursos ofertados pelo Estado, principalmente nas áreas de atividades-fim, em busca da segurança e da estabilidade que o emprego público oferece.
          Esses concursos não são ofertados porque os governantes de plantão são bonzinhos, humanistas e se preocupam com o povo e sim porque a Carta Cidadã de 1988, no art. 37, II obrigam os governantes a fazerem concurso público, além de terem que seguir os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Esses princípios é o famoso L.I.M.P.E. ensinado pelos bons professores de direito administrativo para os candidatos às vagas públicas federais, estaduais e municipais.
          Tais determinações têm a finalidade de evitar que os apaziguados dos poderosos sejam escolhidos pelo famoso QI (Quem Indica), cujo real valor é de serem sempre subservientes aos seus reis. Também evitar que os cargos e funções (atividades-fim) públicas sejam eternamente alvos de terceirizações, de temporários, de bolsistas etc. enfraquecendo ainda mais o Estado e piorando o atendimento prestado ao povo.   
          Nesse sentido vejam o que o insigne jurista e professor Hely Lopes Meirelles já, em 1974, alertava e continua valendo até hoje as suas proféticas palavras:
O concurso é o meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público, e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, consoante o art. 97 da Constituição da República. Pelo concurso se afastam, pois, os ineptos e os apaniguados, que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantêm no poder, leiloando empregos públicos (Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Revista dos Tribunais, 1974, p. 398-399).
          Infelizmente, apesar do tempo, alguns governantes continuam a não seguir os princípios constitucionais, sempre encontrando um meio de burlar o art. 37, II da CF/88, além de achincalharem, explicitamente, as determinações provenientes do poder judiciário, o que não deixa de ser um risco para o verdadeiro Estado Democrático de Direito e deixa no ar um ranço de regimes ideológicos totalitaristas, tanto de esquerda como de direita, como por exemplo, o neoliberalismo, o nazismo, o fascismo, o comunismo da URSS, de Cuba etc.
          Outrossim, convém sempre estarmos atentos contra a violação de  direitos fundamentais e  dos princípios constitucionais maculados por aqueles que já comungaram ou não, diretamente ou indiretamente,  com essas ideologias degradantes. Estarmos sempre prontos para criticar e impetrar ações judiciais contra alguns desses governantes escolhidos pelo povo, o qual, infelizmente, é manipulado através de vários meios midiáticos pela emoção momentânea e, infelizmente, nunca pela voz da razão.
          E, por fim, coloquei para completar essa linha de pensamento, um artigo importantíssimo de uma autoridade do nosso judiciário sobre a tentativa de se proibir a abertura de novos concursos a nível federal e, até mesmo, a proibição dos concursados já aprovados de não poderem realizar o curso de formação.
          Após a leitura do artigo, tirem as suas próprias conclusões, mas não se esqueçam: conclusões sempre baseada na voz da razão e não da emoção.
          Aos que se interessarem, vamos ao artigo.           
O QUE É A LEI SE O MAJOR QUISER?
Sobre a suspensão dos concursos no Executivo federal por um ano e o desrespeito ao art. 37 da CF, a quem estuda para concurso e a população.
 William Douglas*
  Nas “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, três senhoras vêm à casa do Major Vidigal, que era o chefe de polícia, para pedir a condescendência dele em relação a um jovem soldado. O major fecha a carranca e diz que não pode fazer nada porque existe uma lei. Uma das senhoras diz: “– Ora a lei... o que é a lei, se o Sr.  major quiser?” Então, completa o autor: “o major sorriu-se com cândida inocência”.
Quando o assunto é prover os cargos vagos no Executivo federal, parece que o problema é outro: "Ora a lei... o que é a lei, se a Sr.a Secretária não quiser?" (paráfrase minha).
Fiquei pasmado com a notícia vinculada na Agência Brasil, de que a secretária do Orçamento Federal do Ministério do Planejamento, Célia Correa, afirmou que “não vai ter concurso público nenhum este ano. Todos os concursos serão postergados”. Pior que isso, a secretária também afirmou que “até mesmo aqueles que tinham sido realizados e não tiveram curso de formação concluído, também serão postergados”.
Não conheço a secretária, e a crítica aqui não é pessoal, mas técnica. Não consigo imaginar como se pode querer parar a máquina estatal por um ano, nem como se pode tratar com tamanho menoscabo o atendimento aos deveres da Administração Pública, pondo-se em risco a continuidade e a qualidade dos serviços públicos.
Uma coisa é suspender concursos federais por uns poucos meses para fazer um estudo do que é mais urgente, e tal medida foi objeto de elogio meu em artigo recente. Outra coisa é parar todos os concursos por um ano, sem distinguir nenhuma prioridade. Mais irrazoável, e até mesmo cruel, é não nomear quem já passou, deixando-se em aberto vagas que precisam ser preenchidas. Até nomeados estão deixando de ser empossados. Isso é um absurdo. Mais que um desrespeito a quem estudou e passou, isto é um enorme desrespeito a quem precisa dos serviços públicos onde tais servidores são necessários.
A postura adotada despreza a Súmula STF nº 16  (“Funcionário nomeado por concurso tem direito à posse”), bem como para os demais casos, despreza as decisões do STJ e do STF.
 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 227.480/RJ, assentou que “se o Estado anuncia em edital de concurso público a existência de vagas, ele se obriga ao seu provimento, se houver candidato aprovado”. O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, já afirmou:
Servidor público. Concurso para o cargo de oficial de justiça do Estado de São Paulo. Candidato aprovado dentro do número de vagas previstas em edital. Direito líquido e certo à nomeação. 1. O concurso representa uma promessa do Estado, mas promessa que o obriga – o Estado se obriga ao aproveitamento de acordo com o número de vagas. 2. O candidato aprovado em concurso público, dentro do número de vagas previstas em edital, como na hipótese, possui não simples expectativa, e sim direito mesmo e completo, a saber, direito à nomeação. 3. Precedentes: RMS-15.034, RMS-15.420, RMS-15.945 e RMS-20.718. 4. Recurso ordinário provido (STJ. RMS n° 19.478/SP. Sexta Turma. Rel. Min. Nilson Naves. DJ, 25.08.2008).
Será que o novo governo, que tem tido posturas excelentes e decisões mais que elogiáveis, irá errar justamente aqui? Ignorar a Constituição, as leis, o STF e o STJ, deixar de ser sério com quem acreditou nele e fez os concursos? E, mais que tudo, ignorar as necessidades prementes dos órgãos para poderem ser eficientes?
Não quero crer que a secretária desconheça que os cargos que estão sendo providos, e as pessoas que serão nomeadas, não estão sendo chamadas “por esporte”  ou diletantismo governamental. Os concursos estão preenchendo vagas criadas por lei. Não preencher tais cargos é descumprimento expresso da norma legal que criou as vagas e atentado contra a Constituição e o povo.
Não se diga, anoto, que há cortes a fazer. É óbvio que há cortes a fazer! Apenas não podem ser feitos dessa forma arbitrária, genérica e irrazoável. Não se pode cortar o orçamento sacrificando a população nem tornando inviável a prestação de serviços públicos essenciais tais como, só para dar exemplos seriíssimos, os do INSS, PF e PRF.
Ao lado desse absurdo, anote-se outro: ignorar os casos especiais, os quais, em um primeiro momento, noticiou-se que seriam poupados. Veja-se, por exemplo, o caso do BACEN, onde 43% dos funcionários irão se aposentar até 2014 (este ano, serão 15%). O BACEN tem sido elogiado internacionalmente e tem dado lucro. Como ele irá funcionar com menos da metade dos servidores que a lei diz que  precisa? Ou será que na hora da “emergência” irão contratar terceirizados, sem concurso, e gastando mais do que gastariam se fossem servidores concursados?
E então, Secretária? Vamos deixar o povo mal atendido no INSS, a população e as rodovias federais à mercê de traficantes e contrabandistas de armas e drogas, e o BACEN sem meios para continuar seu excelente trabalho? Vamos deixar o trabalho escravo continuar nesse país, em pleno século XXI, por falta de fiscais do trabalho?
Não posso acreditar que uma máquina do tamanho do Executivo federal será tratada como se fosse uma padaria, onde o dono pode decidir não contratar ninguém por um ano. O Executivo federal é grande demais, complexo demais, e tem responsabilidades demais para ser tratado dessa maneira. Não me parece ser razoável, nem adequado, uma suspensão geral como esta, anunciada quase com naturalidade, como se estivéssemos tratando, já disse, de uma padaria, e não de um governo que atende 180 milhões de pessoas.
Custa crer que as expectativas da população e das pessoas que se preparam para se tornarem servidores serão tratadas dessa forma. Mais que isso, que a lei que criou os cargos será ignorada. Não sei se a Secretária é concursada, mas, se for, deveria se lembrar de como é custoso se preparar para um concurso e, de repente, ouvir que o governo mudou de ideia e que – por um ano inteiro – não vai mais cumprir as leis nem realizar os concursos que a Constituição prevê.
O que a Sr.a Secretária quis dizer ao afirmar que fará concurso apenas se houver uma “emergência”? Será que desconhece que não dá tempo para fazer um processo seletivo quando a "emergência" aparece? Que o Estado tem que se precaver e prover os cargos antes das emergências? Será que ignora que atender bem no INSS, no SUS e ter polícia trabalhando já é uma emergência?
Outro ponto a ser anotado é que as pessoas aprovadas no concurso dentro do número de vagas, bem como aquelas que surgirem em razão de desistências, ou nas hipóteses em que o edital que anunciar que o concurso vai ser utilizado para o provimento das vagas existentes e que surgirem dentro do prazo de validade do concurso, têm o direito à nomeação dentro do prazo de validade, sendo um direito reconhecido pelo STF e STJ. O que quer o governo? Obrigar a assoberbar ainda mais de ações o Judiciário, e perder várias ações que se tornarão necessárias em virtude de sua atitude impensada?
Além disso, a medida pode gerar outras ações também no campo da improbidade. Como muitas atividades são contínuas, talvez queiram fazer, quando o problema estourar, contratação de pessoal terceirizado. Isto burla o princípio do concurso publico, em prática condenada por toda a doutrina e que já foi objeto de ações do Ministério Público e condenação pelos Tribunais de Contas. Será que vamos ter que ver essas irregularidades praticadas outra vez? O governo não pode criar a urgência pelas contratações temporárias, e esta é exatamente uma das consequências de interromper os concursos. Um exemplo disso é o que está acontecendo na FIOCRUZ e em Universidades Federais.
A arrecadação está aumentando, temos casos urgentes e inadiáveis de demandas por servidores; não se pode deixar de repor aposentadorias e exonerações. Enquanto isso, o Executivo federal trata a reposição como assunto menor. Inacreditável.
O dano a quem leva a sério a proposta de se tornar servidor não é maior porque tais pessoas, as que estudam para concurso, irão migrar para os concursos não suspensos: estaduais, municipais, do Judiciário federal, e das estatais. Mas há muito dano, apesar disso.
Indago: os concursandos podem ir para outro lugar (maldade, mas podem). Mas para onde irão os cidadãos que votaram na Presidenta eleita e que precisam ser atendidos de modo digno e eficiente pela Administração Pública Federal?
 A notícia, caso seja corrigida, mostrará que está havendo a falta de cuidado devido ao se tratar de um assunto tão sério. Mas, menos mal. Mais bizarro será se a notícia for confirmada, pois mostrará falta de zelo com a lei e com a continuidade, qualidade e eficiência da Administração Pública da União, não só compromisso de campanha mas, muito mais que isso, dever constitucional (art. 37, caput, da CF).
Curioso, em relação aos reajustes salariais, haver sido noticiado que “Reajustes já formalizados não têm como não cumprir”. E a lei, Senhora Secretária, a lei que criou os cargos, tem como não ser cumprida? Ou serão a lei e a Constituição Federal meros detalhes se a Sr.a Secretária assim o quiser?
*William Douglas é juiz federal/RJ, mestre em Direito, especialista em políticas públicas e governo.  williamdouglas@andacon.org.br
Publicado originalmente no site: http://www.andacon.org.br

Atividade-fim: Que é essencial as operações do Estado, o qual leva a efeito para o desempenho de suas atribuições especificas, como, por exemplo, cargo/função de enfermeiro, de polícia, de juiz, de professor, de médico, de farmacêutico, de nutricionista etc. É a vocação  social do Estado em serviços permanentes e essenciais, com planos específicos de cargos e salários, enquanto que atividade-meio é complementar, coadjuvante ou propiciadora da atividade-fim. Ex. Serviços de manutenção, vigilância, limpeza, merendeira, garçom etc.

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