quinta-feira, 31 de maio de 2007

A ESCRAVINHA, O ESCRAVOCRATA E O DIREITO(?)

- Quando escrevo neste blog a intenção é provocar reflexões sobre determinados aspectos éticos, morais e educacionais que afetam o nosso cotidiano e apontar possíveis caminhos. Muitos aspectos de conduta social tidos como bons e outros considerados como maus, no atual estágio de civilização, estão arraigados em nossa sociedade por atos gerados no passado, muitos dos quais trazidos pelos “invasores” portugueses a partir do século XV. No Brasil, os lusos despejaram degredados, prostitutas, os inocentes “cristãos novos” perseguidos pela intolerância da santa inquisição cristã e degenerados de toda a ordem possível. Isto gerou muitos costumes, uns eram costumes altruísticos e outros nem tanto. Costumes pérfidos, gerados pela cobiça, pela luxuria, pela ira e pela ignorância continuam a serem exercidos até hoje, apesar do aspecto imoral e da ilegalidade prescrita em leis para muitos destes infames costumes.

- Portanto, o assunto que passo a narrar tem as suas raízes em costumes gerados no regime escravocrata do Brasil Colônia e perpetuado pelo Império do (não) brasileiro Dom Pedro I, filho e herdeiro do rei português Dom João VI.

- No dia 13/05/2007, dia em que se comemora, em tese, o fim da escravidão no Brasil, foi denunciado em um grande jornal local de Manaus mais um caso de regime escravocrata de uma doméstica humilde, oriunda do interior do Amazonas, com o pomposo título de “Cinco meses de escravidão”. Na reportagem é constatado, a princípio, vestígios de assédio moral e de humilhações generalizadas. Até o direito de estudar tinha sido negado à empregada escravizada.

- O que chama a atenção nesse triste episódio é o nível cultural dos seus patrões, se é assim que podemos chamá-los. De acordo com a matéria, ele é um juiz responsável por duas comarcas do interior do Estado e a sua esposa é uma advogada, obviamente licenciada pela Ordem dos Advogados do Brasil e seguidora dos princípios éticos estipulados pela OAB.

- Outrossim, não importa os argumentos dos patrões dessa moça. Eles fazem parte de uma minoria de brasileiros instruídos e, casualmente, são detentores de conhecimentos jurídicos. Nada, absolutamente nada, justifica os seus pérfidos atos para com a pessoa humilde que os serviam.

– Por fim esse caso não é o único e se espalha às centenas, de maneira velada, por todo o território nacional. Eu, pessoalmente conhece dois casos, dos quais conheci algumas das pessoas envolvidas.

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- A partir de agora eu passarei a narrar alguns detalhes de um dos casos que conheço sobre uma pessoa mantida há anos como empregada doméstica escravizada em uma residência de um bairro da cidade de Manaus/AM e com todos os seus direitos castrados. Vou omitir os nomes reais, por motivos óbvios, e passarei a usar nomes fictícios. O outro caso, que será narrado em outra ocasião, é bem interessante, faz alusão a uma criança de oito anos, a qual foi escravizada por uma professora e por um jornalista que trabalhava em um importante jornal do sul do país, em Porto Alegre/RS.

- O primeiro caso foi presenciado por Schossler, uma pessoa de minha absoluta confiança, a qual conheço muito bem. Essa pessoa conviveu por anos com a família Santos, de classe média, cujos integrantes conheço um pouco. Schossler chegou a morar na residência dessa família e presenciou “in loco” os fatos a seguir narrados.

- A família Santos mantém a vinte e três longos anos, em sua residência, uma moça conhecida por Laciará, arrebanhada de uma pobre família do interior do Nordeste aos doze anos de idade.

- Laciará ainda se lembra de que a família Santos fez uma miríade de promessas aos seus pobres pais, entre as quais, a de que seria tratada como um membro da família e que dariam estudos para que Laciará vencesse na vida. A pobre menina jamais iria ver os seus genitores novamente, perdendo completamente os vínculos familiares com o passar dos anos.

- Laciará, apesar da tenra idade, ajudou essa família a criar os seus quatro filhos e ainda hoje cuida de uma filha que possui problemas mentais, enquanto seus patrões saem para o trabalho. Convém ressaltar que a sua patroa não faz absolutamente nenhum tipo de serviços domésticos e os filhos tampouco.

- Laciará não possui carteira de trabalho assinada, não tem salário, prepara as refeições da família, faz todo o tipo de limpeza doméstica. Seu trabalho cessa a noite quando seus patrões se recolhem para o descanso noturno, em torno das vinte e três horas. Levanta-se às cinco horas da madrugada, antes dos seus patrões, para preparar o café matinal da família, não possui folga aos fins de semana e tampouco férias. É interessante comentar que essa moça lava as roupas da família a moda antiga, ou seja, usando apenas as mãos, pois o seu patrão não tem uma máquina de lavar roupas, mas possui um carro novo na sua garagem. Em troca dos serviços prestados ela recebe algumas bugigangas, roupas velhas e um cantinho para dormir.

- Schossler, algumas vezes, presenciou humilhações proferidas pelos patrões. Aproveitam-se da sua fragilidade psíquica, da falta de conhecimento e da visível timidez. De vez em quando fazem ameaças de deportá-la para o Nordeste sem direito a nada, principalmente quando comete erros relacionados com o serviço doméstico, ou quando ousa reclamar da sua precária situação.

- Mais recentemente, de maneira desconsolada, Laciará confidenciou a Schossler que obteve a simpatia de uma senhora de idade e do seu filho, os quais moram ao lado da casa dos patrões há pouco tempo. Essa vizinha a elogiava pela sua conduta recatada e pelo trabalho que faz. A patroa soube dá amizade através de uma das suas filhas, a qual fez comentários maldosos de Laciará. De imediato a patroa a proibiu terminantemente para que não conversasse mais com a vizinha. Foi humilhada de maneira grotesca com palavrões de baixo escalão, entre as quais de “prostituta” e “cadela no cio”, pois deduziu que estava se insinuando para o filho da respectiva senhora. Algo que não é real.

- Em outra ocasião, uma filha da família comentou para Schossler que já houve assédio sexual por parte do patrão, mas de acordo com a narração, tal ato tinha sido violentamente repelido pela pobre empregada. Tal fato, obviamente, nunca chegou aos ouvidos da patroa.

- Laciará agora está com trinta e cinco anos de idade e já apresenta problemas de saúde, pois se queixa de dor na coluna e de outros problemas, mas ninguém da família escravocrata se preocupa com a sua saúde.

- No contexto geral, Schosler diz que Laciará é totalmente dependente e subjugada física e espiritualmente por essa família, que ceifou os melhores anos da sua juventude. Nunca permitiram que tivesse uma vida social, nunca teve um namorado e a duras custa conseguiu adquirir algum estudo por iniciativa própria.

- Por outro lado, apesar dos seus trinta e cinco anos, continua sofrendo humilhações e provavelmente será descartada em algum momento do futuro.

- Apesar de todas as atribulações e sofrimentos, Laciará conseguiu, nos últimos anos, terminar o EnsinoMédio no período da noite em um colégio público perto da casa dos patrões. Os seus patrões não viram com bons olhos essa tentativa de que ela adquirisse conhecimentos e, felizmente, não conseguiram impedi-la do seu intento, porém ficou bem claro o alerta dos seus algozes de que o estudo não poderia interferir nos trabalhos domésticos sob nenhuma hipótese.

- Outrossim, Laciará confidenciou a Schossler que ainda tem sonhos de fazer uma faculdade e como não tem dinheiro para pagar um cursinho, após a conclusão do término do Ensino Médio, ela está repetindo o terceiro ano novamente, na expectativa de melhorar o seu conhecimento, mas os seus algozes já disseram que será difícil para ela fazer uma faculdade e além do mais ela não tem dinheiro nem para uma passagem de ônibus.

- Schossler observou que as ameaças de deportação da escrava estão aumentando. Esse assédio moral ocorre pelo motivo de que Laciará começa a acordar do seu longo pesadelo para a sua triste realidade de empregada doméstica escravizada, sem direitos a nada e isto está incomodando os seus patrões, se é que assim podemos chamá-los.

- Essa é a vida diária de uma brasileirinha pobre, arrancada do interior do Nordeste, escravizada por uma família com valores éticos e morais duvidosos e que provavelmente ainda acham que a empregadinha escravizada lhes devem um grande favor por a ter tirado da pobreza e do convívio dos seus pais pobres do interior do Nordeste.

- Tiraram tudo dessa moça, a sua juventude, a sua força e a sua própria vida que se exaure com a vinda de doenças adquiridas pelo esforço repetitivo de trabalhos domésticos dos últimos vinte e três anos.

- Conforme já mencionado, ela agora está com trinta e cinco anos de idade e terá que tomar uma grande decisão em sua vida até o final do ano. Terá que romper com os grilhões que a prendem a essa família e iniciar uma nova jornada. É uma oportunidade rara que está surgindo para Laciará, pois uma família de princípios éticos e morais justos já ofereceram  uma possibilidade de trabalhar, com todos os direitos trabalhistas a que tem direito, em uma residência em um outro Estado. Um requisito básico imposto por essa família é de que ela terá que se instruir mais, fazendo algum curso superior em uma universidade local.

- Laciará terá forças de romper com a família que a subjuga a anos? Em todos esses anos o assédio moral foi intenso. Tudo dependerá do estado da sua mente e da sua capacidade de enfrentar novos desafios. As peças do xadrez da vida estão em movimento no tabuleiro do destino para mais uma jogada.

- Como disse no início, raízes culturais oriundas dos invasores escravocratas, fazem com que algumas famílias se achem na razão de terem a sua “escravinha particular”, para a lide doméstica e até mesmo em alguns casos, para satisfazer a libido dos seus “donos” e filhos.

- Schossler separou-se da filho do escravocrata e mudou-se junto com os pais para outro Estado, perdendo o contato com Laciará. Esperamos que ela tenha aproveitado a oportunidade e torcemos que ela processe essa família que a escravizou por longos anos. 

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- Deste ponto em diante farei uma sucinta abordagem do DIREITO, tendo em foco o trabalhador doméstico que é uma das classes mais exploradas deste País.

- Infelizmente esse tipo de exploração doméstica de um ser humano por outro ser humano, muitas vezes é de difícil comprovação, pois acontece no recôndito do lar, o qual é inviolável por lei e geralmente acontece em classes sociais mais abastadas e acima de qualquer suspeita. A pessoa explorada é mantida subjugada física e espiritualmente pelos seus algozes e pela sua baixa condição social e dependência, não tem ânimo suficiente para reivindicar os seus direitos como cidadão ou cidadã. Algumas vezes são os próprios vizinhos ou parentes indignados que fazem a denúncia.

- O trabalho doméstico é considerado por muitos como sem valor, mas para quem vive esta realidade diariamente, sabe perfeitamente o desgaste que ele provoca no decorrer dos anos. No meu ponto de vista mais leis deveriam de ser articuladas no âmbito previdenciário, trabalhista e penal, com punições mais severas, pois estariam inibindo ainda mais a exploração de pessoas, inclusive de crianças, levadas para dentro de uma residência, onde passarão parte de suas vidas servindo aos seus algozes nos afazeres domésticos e muitas vezes até mesmo sendo abusadas sexualmente por anos a fio. Essas vítimas são bem escolhidas pelos escravizadores, preferencialmente sem ninguém por elas e de origem miserável. Dificilmente terão acesso à proteção das leis trabalhistas e previdenciárias, a não ser que alguém faça a denúncia ou a própria pessoa procure pelos seus direitos, o que é mais difícil, pois está totalmente fragilizada.

- Com relação à violência sofrida por mulheres, foi sancionado no ano passado a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 que cria mecanismos que irão ajudar a coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, inclusive no âmbito da unidade doméstica com ou sem vínculo familiar, estendendo-se para as pessoas ocasionalmente agregadas. É uma lei moderna que procura preservar os direitos humanos da mulher, mas ainda é muito pouco frente ás mazelas que as mulheres pobres proletárias enfrentam quando são exploradas ou escravizadas por pessoas que fazem parte da classe social dominante.

- Em 2006, também foi promulgada a Lei nº 11.324, de 19 de julho de 2006 que dá um pouco mais de proteção ao trabalhador doméstico, apesar dos vetos. É mais um avanço no sentido de que ao patrão é vedado de fazer descontos com relação ao fornecimento de alimentação, vestuário, higiene ou moradia, desde que resida no local de trabalho.

- Infelizmente, muitos ainda adotam o espírito escravagista, frustrando, iludindo, logrando e privando o seu trabalhador doméstico para com os direitos assegurados por Lei Trabalhista. Usam, muitas vezes, da fraude, do ardil e do engodo. São artifícios que levam o enganado (trabalhador doméstico analfabeto ou funcional) a criar uma aparência distorcida da realidade por falta de conhecimento. O empregado doméstico, em sua ignorância, muitas vezes se concluem com o patrão, o qual, às vezes, pode ser até mesmo um erudito, que usa o seu conhecimento para enganar o texto legal, mas o titular de um direito assegurado por lei trabalhista nunca poderá ser renunciado por ser um direito imperativo determinado pela lei. Este crime poderá ser apurado mediante uma ação penal pública incondicionada.

- Às vezes, uma jovem é arrebatada de regiões longínquas, por pessoas que possuem um ótimo grau de instrução, inclusive até mesmo com conhecimentos jurídicos, e a reduz a condição análoga à de uma escrava dentro de suas residências para a lide doméstica.

- Para a caracterização desse processo basta que haja uma total submissão do trabalhador doméstico ao seu algoz, o que pode acontecer por vários meios, como por exemplo, através de mentiras e até mesmo usando de meios violentos.

- É irrelevante a autorização da vitima, pois o assédio moral pode tê-la levado a um estado de alienação mental, podendo até mesmo refutar a própria liberdade e a outros direitos inerentes à dignidade humana. A esse processo de dominação mental e física, que contraria o escopo da própria civilização e do nosso ordenamento jurídico, poderá ser impetrado uma ação penal pública incondicionada.

- Reproduzo o art. 149 da Lei 10.803 de 11 de dezembro de 2003: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência”.

- O Novo Código Civil pátrio e a Constituição Federal de 1988, também estabeleceram, em suas normatizações, artigos sobre os atos ilícitos que violam os direitos alheios.

- Infelizmente as punições para os violadores dos direitos dos seus semelhantes são brandas e dezenas de recursos acentuam a sensação de impunidade e a eficácia de uma punição exemplar fica diluída para os criminosos que pertençam principalmente à classe social mais aquinhoada.

- Acredito que somente com uma educação transdisciplinar de qualidade, elevação da ética e da moral do povo em geral, se caso permitirem que isto aconteça, os futuros legisladores poderão enquadrar esses casos de escravagismo como crime hediondo e sem qualquer tipo de apelação, pois as raízes disso tudo está na conduta antiética e imoral geradas a partir das paixões mundanas herdadas, tais como: a cobiça, a ira, a tolice, o equívoco, o ressentimento, o ciúme, a lisonja, a fraude, o orgulho, o desprezo, a embriaguez (drogas) e o egoísmo.

- De qualquer maneira, já temos material suficiente para minimizar a afronta dos direitos alheios. Basta denunciar, ser solidário, ter coragem, ter ética, ter moral e usar às ferramentas jurídicas que já temos instituídas em nosso ordenamento jurídico.

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